quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Insustentável preconceito do ser

Por ROSANA JATOBÁ


Era o admirável mundo novo!

Recém-chegada de Salvador, vinha a convite de uma emissora de TV, para a qual já trabalhava como repórter.
Solícitos, os colegas da redação paulistana se empenhavam em promover e indicar os melhores programas de lazer e cultura, onde eu abastecia a alma de prazer e o intelecto de novos conhecimentos.

Era o admirável mundo civilizado!
Mentes abertas com alto nível de educação formal.
No entanto, logo percebi o ruído no discurso:
- Recomendo um passeio pelo nosso "Central Park", disse um repórter. Mas evite ir ao Ibirapuera nos domingos, porque é uma baianada só!
- Então estarei em casa, repliquei ironicamente.
- Ai, desculpa, não quis te ofender. É força de expressão. Tô falando de um tipo de gente.
- A gente que ajudou a construir as ruas e pontes, e a levantar os prédios da capital paulista?
- Sim, quer dizer, não! Me refiro às pessoas mal-educadas, que falam alto e fazem "farofa" no parque.
- Desculpe, mas outro dia vi um paulistano que, silenciosamente, abriu a janela do carro e atirou uma caixa de sapatos.
- Não me leve a mal, não tenho preconceitos contra os baianos. Aliás, adoro a sua terra, seu jeito de falar....

De fato, percebo que não existe a intenção de magoar.
São palavras ou expressões que, de tão arraigadas, passam despercebidas, mas carregam o flagelo do preconceito.

Preconceito velado, o que é pior, porque não mostra a cara, não se assume como tal.
Difícil combater um inimigo disfarçado.

Descobri que no Rio de Janeiro, a pecha recai sobre os "Paraíba", que, aliás, podem ser qualquer nordestino.
Com ou sem a "Cabeça chata", outra denominação usada no Sudeste para quem nasce no Nordeste.

Na Bahia, a herança escravocrata até hoje reproduz gestos e palavras que segregam.
Já testemunhei pessoas esfregando o dedo indicador no braço, para se referir a um negro, como se a cor do sujeito explicasse uma atitude censurável.

Numa das conversas que tive com a jornalista Miriam Leitão, ela comentava:
-O Brasil gosta de se imaginar como uma democracia racial, mas isso é uma ilusão. Nós temos uma marcha de carnaval, feita há 40 anos, cantada até hoje. E ela é terrível. Os brancos nunca pensam no que estão cantando. A letra diz o seguinte:
"O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, quero o teu amor".
"É ofensivo", diz Miriam.
Como a cor de alguém poderia contaminar, como se fosse doença?
E as pessoas nunca percebem.

A expressão "pé na cozinha", para designar a ascendência africana, é a mais comum de todas, e também dita sem o menor constragimento.
É o retorno à mentalidade escravocrata, reproduzindo as mazelas da senzala.

O cronista Rubem Alves publicou esta semana na Folha de São Paulo um artigo no qual ressalta:
"Palavras não são inocentes, elas são armas que os poderosos usam para ferir e dominar os fracos. Os brancos norte-americanos inventaram a palavra 'niger' para humilhar os negros. Criaram uma brincadeira que tinha um versinho assim:
'Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by the toe'...que quer dizer, agarre um crioulo pelo dedão do pé (aqui no Brasil, quando se quer diminuir um negro, usa-se a palavra crioulo).
Em denúncia a esse uso ofensivo da palavra , os negros cunharam o slogan 'black is beautiful'.
Daí surgiu a linguagem politicamente correta.

A regra fundamental dessa linguagem é nunca usar uma palavra que humilhe, discrimine ou zombe de alguém".

Será que na era Obama vão inventar "Pé na Presidência", para se referir aos negros e mulatos americanos de hoje?

A origem social é outro fator que gera comentários tidos como "inofensivos", mas cruéis.
A Nação que deveria se orgulhar de sua mobilidade social, é a mesma que o picha o próprio Presidente de torneiro mecânico, semi-analfabeto.

Com relação aos empregados domésticos, já cheguei a ouvir:
- A minha "criadagem" não entra pelo elevador social !

E a complacência com relação aos chamamentos, insultos, por vezes humilhantes, dirigidos aos homossexuais ?
Os termos bicha, bichona, frutinha, biba, "viado", maricona, boiola e uma infinidade de apelidos, despertam risadas.
Quem se importa com o potencial ofensivo?

Mulher é rainha no dia oito de março.
Quando se atreve a encarar o trânsito, e desagrada o código masculino, ouve frequentemente:
- Só podia ser mulher! Ei, dona Maria, seu lugar é no tanque!

Dependendo do tom do cabelo, demonstrações de desinformação ou falta de inteligência, são imediatamente imputadas a um certo tipo feminino:
-Só podia ser loira!

Se a forma de administrar o próprio dinheiro é poupar muito e gastar pouco:
- Só podia ser judeu!

A mesma superficialidade em abordar as características de um povo se aplica aos árabes.
Aqui, todos eles viram turcos.
Quem acumula quilos extras é motivo de chacota do tipo: rolha de poço, polpeta, almôndega, baleia ...

Gosto muito do provérbio bíblico, legado do Cristianismo: "O mal não é o que entra, mas o que sai da boca do homem".

Invoco também a doutrina da Física Quântica, que confere às palavras o poder de ratificar ou transformar a realidade.
São partículas de energia tecendo as teias do comportamento humano.

A liberdade de escolha e a tolerância das diferenças resumem o Princípio da Igualdade, sem o qual nenhuma sociedade pode ser Sustentável.
O preconceito nas entrelinhas é perigoso, porque , em doses homeopáticas, reforça os estigmas e aprofunda os abismos entre os cidadãos.
Revela a ignorancia e alimenta o monstro da maldade.
Até que um dia um trabalhador perde o emprego, se torna um alcóolatra, passa a viver nas ruas e amanhece carbonizado:
-Só podia ser mendigo!

No outro dia, o motim toma conta da prisão, a polícia invade, mata 111 detentos, e nem a canção do Caetano Veloso é capaz de comover:
- Só podia ser bandido!

Somos nós os responsáveis pela construção do ideal de civilidade aqui em São Paulo, no Rio, na Bahia, em qualquer lugar do mundo.
É a consciência do valor de cada pessoa que eleva a raça humana e aflora o que temos de melhor para dizer uns aos outros.

PS: Fui ao Ibirapuera num domingo e encontrei vários conterrâneos...

Rosana Jatobá é jornalista, graduada em Direito e Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, e mestranda em gestão e tecnologias ambientais da Universidade de São Paulo.
Também apresenta a Previsão do Tempo no Jornal Nacional, da Rede Globo.

2 comentários:

Gabriele Moura disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabriele Moura disse...

É impressionante, intrigante..
preconceito é algo contaminoso ou parece que a gente já nasce com essa praga urbana. Só quando pisam no nosso calo que sentimos o peso das palavras ditas. Quem sabe um dia nos encomodamos com o calo alheio e paramos com isso.

muito bom!